As chaves da consciência
As diferenças na cor da pele travaram durante quase 50 anos a luta por uma democracia livre e contra a discriminação racial na África do Sul, onde os ativistas Stephen Lee (Daniel Webber) e Tim Jenkins (Daniel Radcliffe) acabaram na Prisão Política de Pretória para “brancos”, em março de 1978. Lá encontraram Denis Goldberg (Ian Hart), condenado a quatro sentenças de prisão perpétua por organizar uma violenta revolução, no mesmo julgamento de Nelson Mandela e Walter Sisulu. O guião de “Escape from Pretoria” – escrito por Francis Annan, de ascendência afro-americana -, no entanto, quase não tem política e foca-se no plano de preparação da fuga. Entre assassinos e prisioneiros de consciência, Lee e Jenkins procuram a salvação, numa teia de risco muito difícil de libertar, assumindo que não tentar fugir é fazer um pacto com o diabo e que é nas falhas do sistema de segurança que moram os agentes da liberdade. A última meia hora é do melhor que já se viu em filmes sobre prisioneiros em fuga, mas “Escape From Pretoria” tem pouca substância cinematográfica e é repetitivo.
A Caixa de Deus
A versão turca (Yedinci Kogustaki Mucizeda) da história de Memo e Ova é uma das cinco que foram produzidas (Filipinas, Índia, Brunei e Indonésia são as outras) depois do original sul coreano de 2013, que se foca ainda mais na relação (mesmo dentro da prisão) entre pai e filha, para além de outras diferenças narrativas – a Ova não tem avó, por exemplo.
“O Milagre da Cela 7” é um convite descarado para a emoção, uma montra para a fé e crença em Deus. Não receia apressar o relógio para desmontar o coração do espectador desde cedo e aproveita-se, de forma espetacularmente bela, da fragilidade humana para nos fazer acreditar em gigantes de um só olho, em paredes com ouvidos e em caixas vazias enviadas por Deus, mas cheias quando são guardadas por anjos. É verdade que tem uma lista de retalhos reciclados que confirmam a fórmula de sucesso de alguns dramas históricos do passado do cinema, mas não é difícil aceitar essa manipulação, pois também os espectadores mais sensíveis, durante 2 horas e 12 minutos, ficam sem chão e com vontade de brincar com o Memo e a Ova para sempre.
22 de Julho (Netflix)
O silêncio tem voz
A 22 de julho de 2011, dois ataques terroristas abriram importantes feridas políticas na Noruega. O segundo deles na ilha de Utoya, a norte de Oslo, onde centenas de jovens do Partido Trabalhista norueguês acampavam (69 deles morreram). Sete anos depois, a história dos atentados chegou às salas de cinema em dose dupla.
O primeiro a estrear, “22 de Julho”, do britânico Paul Greengrass (que, entre outros trabalhos, dirigira parte da entusiasmante saga Jason Bourne e o excelente Bloody Sunday, em 2002) resume o massacre de Utoya a 15 minutos e, de forma capaz, transporta o filme para a dor das famílias destroçadas e para a burocracia e crueza do sistema judicial. E fá-lo com ritmo e frontalidade, algures entre o orgulho e a solidão do assassino, com inúmeros personagens que tentam enriquecer a narrativa, sem desrespeitar a verdade.
O segundo estreou no mês seguinte, assinado pelo norueguês Erik Poppe, “Utoya: 22 de Julho”, que optou por um casting local e por filmar num único take (na quarta de apenas cinco tentativas) os 72 minutos da tragédia, com base em relatos minuciosos dos sobreviventes e sem dar importância ao atirador e às suas motivações políticas. “Utoya” tem detalhes técnicos interessantes, também aponta o dedo à incapacidade de resposta das forças de socorro, é notoriamente mais genuíno e foi bem melhor recebido na Noruega do que o primeiro, mas na comparação fica a perder na segunda linha do elenco e ironicamente no ritmo. O filme britânico complementa e é bem diferente: também ensina a chorar em silêncio, em formato de vala comum, enfrentando depois as consequências, ao mostrar “in situ” que a política também pode ser uma guerra com sangue derramado.
𝗨𝗻𝗰𝘂𝘁 𝗚𝗲𝗺𝘀 (“Diamante Bruto”)
Inspira… Expira
Os jovens de New York Benny e Josh Safdie apostaram na hora certa em Adam Sandler como combustível de uma odisseia de loucura e delírio, que desafia e leva ao limite todos os que o rodeiam. “Uncut Gems” passa-se no Diamond District de Manhattan e acompanha no tempo as meias finais da Conferência Este da NBA, em 2012 – entre Celtics e Sixers – e é esse playoff que desenha o terreno da história, com o carimbo do ex basquetebolista Kevin Garnett. O ritmo, tal como o personagem central Howard Ratner, consome e hipnotiza até mesmo o espectador mais distraído. É um filme sobre a sorte que é azar e sobre amigos que são inimigos na vida de um maníaco em constante euforia e tortura mental. Desde o delicioso “Punch Drunk Love”, de 2002 – dirigido por Paul Thomas Anderson – que não se via Adam Sandler como peça transcendente de um filme tão bom, sem género e com uma trilha sonora tão à medida. O complexo (simples, só de aparência) guião de “Uncut Gems”, que estreou na Netflix no final de janeiro de 2020, demorou anos a ser concluído e prestigia o cinema de autor. Baseia-se no negócio da joalharia, penteia a cultura judaica e acerta em cheio no problema do vício no jogo. Tudo aparentemente feito de forma caótica e pouco agradável à primeira e à segunda vista, porque nada está no sítio certo e, neste caso, é mesmo assim que está bem, colocando-nos uma serpente venenosa em cima dos ombros e que nos faz faltar o ar, do início ao fim.

O mundo dos adultos

Um casal em processo de divórcio vê-se de um momento para o outro preso num colete de forças jurídico, abrindo ainda mais a porta ao desconforto da relação. As primeiras cenas, acompanhadas de uma detalhada descrição da personalidade dos dois protagonistas, desbravam o caminho para o mundo dos adultos. Henry, a criança que ainda está a aprender a ler, representa a barra de equilíbrio na vida do casal e no próprio ritmo das cenas “a dois”. O intenso e memorável diálogo de quase um quarto de hora entre Nicole (Scarlett Johansson) e Charlie (Adam Driver), que inicia o último terço do filme, acorda todos os bairros de Los Angeles e é impróprio para os amantes do “pause”, numa espécie de espuma à espera de mais água. Noah Baumbach (também ele filho único e divorciado) dirige e escreve “Marriage Story” com grande arrojo, numa talentosa exposição sempre pronta, cena após cena, a transformar os monólogos em diálogos, de tão completos que são, mas também o simples em melindroso. Mesmo quando ninguém faz por isso, são exatamente assim as relações humanas.
Fora do campo
Nápoles. Faltam seis jornadas para o final da época e os Apache napolitanos fazem a contagem decrescente para a última ronda, que irá decidir o título, em Roma. “Ultras” não é, porém, um filme sobre futebol, mas sim sobre a afirmação descontrolada de uma identidade. Para os adeptos retratados (que idolatram Maradona, mas nunca falam dele), um jogo à porta fechada não é “o” problema, porque não é propriamente de futebol que gostam, embora queiram festejar o título e com isso fazer cair a sua cidade e o Mundo. “Ultras”, que estreou na Netflix em março, assenta na rivalidade e contexto das diferenças entre o Norte e o Sul do futebol italiano, evita tomar partido e moralismos, mas perde pela falta de criatividade e orçamento para uma produção mais corajosa. Não deve em momento algum ser confundido com uma obra que incita a violência (até foge dela em momentos cruciais) ou que desaprova ou idolatra os adeptos que “vivem” o futebol, porque não é nada disso que se trata. É sim uma oportunidade aproveitada por Francesco Lettieri, conhecido produtor italiano, para se estrear na realização com um tema sensível, tirando proveito da sua forte ligação a Nápoles – onde nasceu e cresceu – e à conflituosa história dos Ultras, os da Velha Guarda e os da nova geração. E também para tentar rivalizar com as muitas versões que o cinema britânico tem levado ao Grande Ecrã sobre hooliganismo, mas “Ultras” precisa de ir ao mercado, com várias posições carenciadas e ineficácia no momento da finalização.
O pensamento vadio
O golpe de Estado de 1973 no Uruguai abriu as cortinas a uma ditadura militar. Na altura, o movimento revolucionário Tupamaros foi derrotado e alguns dos sobreviventes acabaram reféns secretos do governo militar, entre eles três amigos de sempre nessa luta, cuja história inspira “La noche de 12 años”. Proibidos de falar uns com os outros, são vistos como traidores da pátria e, durante mais de uma década, aprendem a comunicar sem palavras, a resistir ao limite e a aceitar que são fantasmas do tempo. Diagnosticados com psicose delirante e quase sempre sem contato com o exterior, aprendem a interpretar o Mundo de outra forma e a sonhar com a vitória política, mais do que com a própria liberdade. “La noche de 12 años”, que estreou no final de 2018, tem um significado brutal para milhões de uruguaios, é uma sala de aula de amizade e resistência e, apesar de subestimar o público em algumas opções narrativas, cumpre a sua missão de forma grandiosa. É um hino ao pensamento vadio, cujos acordes bem podiam ser os do tema “Sound of Silence”, na bela versão da catalã Silvia Perez Cruz, que nos absorve sem vaidade.
O mar a preto e branco
Com apenas 36 anos, o cineasta Robert Eggers (estreara-se com The Witch”, em 2015) já tem um espaço de identidade própria na indústria. Em “The Lighthouse”, Thomas Wake (Willem Dafoe) é o dono do farol – como lembra durante todo o filme – e que depois de 13 Natais fora de casa, fica sozinho e torna-se o guardião do mar de New England, na costa nordeste dos EUA. A Thomas apresenta-se o ajudante Ephraim Winslow (Robert Pattinson), um lenhador que tenta ser faroleiro para poupar dinheiro e comprar uma casa no campo. A estes dois personagens, juntam-se apenas os segredos que o mar guarda e que inspiram a poesia dos marinheiros. “The Lighthouse” é um exercício puro de claustrofobia mental e de pânico pela solidão e que, com base em monólogos inspiradores e diálogos violentos, mostra como a confissão de segredos pode ser mais destrutiva do que libertadora. Tal como a vida de Thomas e Ephraim, nada é aprazível, nem ao ouvido nem ao olhar, sensação bem transmitida com um trabalho de fotografia estupendo, com a opção pelo preto e branco, ajudando a manipular e inquietar o espetador. “The Lighthouse”, que ficou de fora das salas portuguesas, está lotado de referências no universo do mistério (até no formato de filmagem), mas tem personalidade. Não é imediato, nem é feito para deixar ninguém confortável, mas é uma coleção respeitável de boas ideias narrativas, mas sobretudo técnicas, num desfile de supremacia para Dafoe e Pattinson.
As diferenças da diferença
Sete anos depois do fecho de um dos centros de produção da General Motors, no contexto da crise de 2008, um bilionário chinês reaproveitou o terreno e devolveu o sorriso a centenas de trabalhadores do ramo, em Lordstown, no Ohio. A Fuyao Glass America, especializada em vidros para automóveis, foi também criada para unificar culturas e métodos de trabalho entre a China e os EUA. “American Factory” escalpeliza a vida da empresa desde então e despe clivagens entre chineses e norte americanos, na posição sobre os direitos do trabalho e sensibilidade no mercado. Levanta questões pertinentes sobre a automatização das fábricas e sobre a influência dos Labor Unions na evolução das empresas; documenta em exclusivo a vida interna do negócio – também em Xangai, na sede chinesa – e entra “em casa” dos sindicalistas, mas arrisca pouco fora disso, no que ao campo meramente político diz respeito. A Fuyao gera lucro desde 2018 e é na base desse dado que “American Factory”, exclusivo Netflix oscarizado em 2020, ajuda a expor que diferentes regras e objetivos podem ambos resultar e que a luta pela excelência (árdua, desconfiada e implacável) pode mais vezes dar certo.
Caça ao tesouro
Chiwetel Ejiofor, o Solomon de “12 Years Slave”, estreou-se na realização e adaptou um livro sobre a pobreza no Malawi, assinado pelo engenheiro William Kamkwamba, que, com 13 anos, ajudou a sua família, na aldeia de Wimbe, a acreditar no futuro através da energia eólica. “The Boy Who Harnessed The Wind” é uma ode à importância do cultivo das terras para a sobrevivência e uma exposição sincera sobre a felicidade subjetiva. Para o povo daquela aldeia, multiplicar um saco de cereais é um Doutoramento e uma emissão de rádio equivale a um salão de festas com cartão dourado. Num país onde é muito baixa a percentagem da população rural com acesso a eletricidade e onde se sofre com a corrupção e se desconfia da democracia, depende-se ainda mais da natureza. “The Boy Who Harnessed The Wind” mostra de forma fiel as especificidades do povo malauiano, mesmo desperdiçando algumas oportunidades de fazer diferente e talvez carimbar mais “cinema” na adaptação. De qualquer forma, a história de Maxwell Simba consegue muitas vezes ensinar o espectador a valorizar o que tem em mãos e a inscrever-se numa caça ao tesouro, à procura do fruto da liberdade.
Circo de feras
Um negócio de plantações secretas de marijuana em Londres coloca no mesmo elenco Mathew McConaughey, Charlie Hunam, Jeremy Strong, Colin Farrell e Hugh Grant, cartão de visita potente que repõe o autor Guy Ritchie no seu terreno de eleição, ao revisitar Tarantino e outras referências do próprio. “The Gentlemen” conta a história de cães de caça, que defendem o seu território e colecionam inimigos, todos eles assassinos conduzidos pela lei da selva, num violento, mas também hilariante circo de feras. Essa fusão entre a comédia e o crime não acabou de sair da loja, mas é certo que a torneira fértil no universo dos gangsters ainda não fechou. O guião circulante, vivaz e sarapintado em “The Gentlemen” – estreado em fevereiro de 2020 – faz-nos surfar no êxtase do desequilíbrio, onde ficam os lugares que o público de Guy Ritchie mais gosta, depois de um passado recente fora da sua zona de conforto. Que o inglês volte depressa, talvez a caminho da sua obra perfeita, pois (ainda) há espaço para reinventar.
O clube das irmãs
O romance escrito no século 19 por Louisa May Alcott continua a inspirar o mundo das artes e Greta Gerwig (autora do recente Lady Bird, em 2018) tricotou à sua maneira uma história “de época” já por si genuína sobre mulheres. Em “Little Women”, Meg (Emma Watson), tem dotes de representação e é a mais velha de quatro irmãs do “clube” que usufruem das várias formas artísticas para compreender o amor; Amy (Florence Pugh) pinta e desenha como poucas, mas é mais esperta do que inteligente; Beth (Eliza Scanlen) é a mais introvertida, a não ser quando se senta ao piano; por fim, Jo (Saoirse Ronan), que sonha publicar um romance e que é vista pela tia March (Meryl Streep) como um caso perdido. Em plena Guerra Civil Americana, e com o pai fora de casa, Marmee (Laura Dern) é a mãe que todas elas querem agradar, numa altura em que as mulheres não podiam entrar na sala dos génios e só procuravam homens ricos para casar. Apesar da fidelização à história original, Greta Gerwig quer dizer presente e aposta em Jo para ser o óbvio alter ego na sua versão de “Little Women”. O diálogo de uma das cenas finais, no clássico “Under The Umbrella”, evoca tudo o que de bom o cinema romântico nos guarda, com ou sem adaptações. E com Saoirse Ronan no papel que já foi de Katharine Hepburn, em 1933, na segunda das cinco anteriores adaptações cinematográficas. “Little Women” – que este ano recebeu seis nomeações e venceu o Óscar de melhor guarda-roupa – aposta numa narrativa saltitante (entre 1861 e 1868), mas nunca sai de cena nem abandona ninguém. E empresta um robe ao coração vagabundo, que não se importa de ficar horas a fio à porta da casa da família March, com receio de interromper o que quer que seja.
Perdão em tom de orgulho
Pedro Almodóvar e Antonio Banderas viveram intensamente a cultura nos anos 80 e fizeram-no muitas vezes lado a lado. O realizador espanhol não consegue, hoje, imaginar o que teria sido “Dolor y Gloria” sem o personagem de si mesmo, Salvador Mallo, na melhor interpretação de sempre de Banderas, premiado em Cannes 2019. O mais recente filme de Almodóvar resume várias décadas na história de um menino que sempre quis estudar não apenas para saber mais, mas para poder ensinar os outros mais tarde; e que na altura em que descobriu a sua homossexualidade, esteve para ser padre, mas encontrou no cinema a sua salvação e casa de talento. “Dolor y Gloria” expressa muito do que o próprio autor viveu e, também por isso, atinge os píncaros da autenticidade e imediatez enquanto obra artística. Não tem a irreverência, mesmo na dor, da narrativa contagiante de outros filmes marcantes de Almodóvar no início do novo século, também porque quase não há ficção, num círculo de personagens que só acreditam em Deus quando não sentem dor. “Dolor y Gloria” é um retrato de memórias, que conferem cansaço, mas também orgulho ao presente, numa lógica de homenagem a quem acompanhou Almodóvar desde sempre – Penélope Cruz e Julieta Serrano, por exemplo, aparecem pela sexta vez na obra do cineasta. É também um imperdível poema sobre o arrependimento e o perdão, sempre personificados em forma de arte.
Quando falta a vergonha
Numa entrevista recente, Bong Joon Ho disse que ainda se sente parte de um “Inception”, sem perceção clara sobre a vitória plena de “Parasite” em Hollywood, numa altura em que já trabalha na adaptação televisiva da história para a HBO. Uma família pobre da caótica Seoul vive numa cave e alimenta-se do improviso para sobreviver e da crença numa rocha sagrada que traz prosperidade – elemento forte da sociedade coreana na dinastia Joseon, que durou 500 anos. Até que um dia entra em território desconhecido e traça um plano que se revela um gráfico com picos de montanha. “Parasite” mora entre a paródia dramática e o terror social, com uma narrativa costurada ao pormenor e que nos revira várias vezes com tiques de perplexidade e desconforto. Tanto desvenda como evapora logo a seguir e fá-lo sempre em modo de vertigem; e tanto nos serve à mesa marisco e filete de salmão em casa da família Park, como nos oferece um cigarro em cima de uma retrete inundada de fezes, em casa da família Kim. “Parasite”, sem qualquer tipo de vergonha, veste-se de gala e entra numa festa de caricatura social, para nos lembrar mais uma vez, de forma cabal e marcante, que o cinema asiático faz muito bem a uma indústria tantas vezes alagada de parasitas.
Os segredos da Fé
Jan Komasa reforçou o seu nome no mapa internacional, através de uma obra sobre a devoção à Igreja Católica, seguida por 92 por cento da população polaca. “Corpus Christi” conta a história de um condenado, que cumpre pena num centro de detenção para jovens e que sonha entrar num seminário, mas o seu cadastro impede-o de cumprir o objetivo pela via normal. Distante dos centros urbanos, Daniel (Bartosz Bielenia) encontra acidentalmente o espaço certo para o desenvolvimento da sua fé. Baseado em factos verídicos, o representante da Polónia entre os melhores filmes estrangeiros em Hollywood 2020 aborda um tema que nos últimos anos já foi explorado em tom de paródia. “Corpus Christi” move-se no tom certo (na cor, no som e nos silêncios), sempre assente na influência da palavra de Cristo numa comunidade que recupera de uma tragédia e que se encontra, por isso, em processo de cura. É uma experiência cinematográfica recompensadora, que não esquece o pecado antes da redenção, nem a violência antes da benevolência. Tal como o improvisado pároco Daniel – em forma de caixa de segredos e que transporta o filme de forma sublime -, também a história foge à mecanização imposta pela força da tradição, lembrando que perdoar é bem diferente de esquecer e que somos sempre melhores a apontar o dedo do que a escondê-lo no próprio bolso.
A galinha da vizinha
Uma década depois de condenado por três anos (cumpriu apenas dois), por ter sido cúmplice no rapto de uma criança, o francês de ascendência maliana Ladj Ly estreou-se nas “longas”, no remake da sua “curta” de 2017. Foi nas ruas de Montfermeil, onde Victor Hugo escreveu “Os Miseráveis”, que o cineasta cresceu e encarou o crime, começando logo aí a desenvolver a história de três polícias que se juntam para palmilhar a mescla étnica dos subúrbios de Paris. “Les Misérables” divide-nos na hora de tomar partido, entre o que está certo ou errado, virando ao contrário o provérbio da galinha da vizinha. Em Montfermeil, não se inveja a vizinhança, não há ervas daninhas nem disfarces e estão todos no sítio certo, contudo à hora errada. As diferenças de personalidade entre os três polícias são o ponto de partida para uma rota que enfrenta a realidade de um bairro assanhado, onde o tempo livre é muito e a resposta à violência, que não escolhe idades, acaba sempre por ser ela própria. Nessa estrada, “Les Misérables” começa por impor respeito e só depois provoca o medo, numa boa tese sobre o conceito de injustiça social e que dispensa histerismos e artifícios para ser enérgica e cativante.
O trauma em fuga
Várias vezes consagrado em Hollywood, o ator Claude Rains, ainda adolescente e antes de contratado pela Royal Academy of Dramatic Art, serviu o exército britânico na I Grande Guerra, onde perdeu grande parte da sua visão, mas não deixou de afirmar a sua distinta voz em “The Invisible Man”, em 1933, na então primeira adaptação do conto de H.G.Wells (também escreveu The Time Machine e War of The Worlds, este levado ao cinema por Spielberg em 2005). No início de 2020, quase um século depois, Leigh Whannell (que estreou a saga “Saw” e entretanto assinou “Insidious” e o espetacular “Upgrade”) decidiu em boa hora fazer a sua adaptação bem diferente da história de Wells e acertou em Elizabeth Moss, no papel de Cecilia Kass, para ser a protagonista que foge de casa do seu marido, um sociopata e génio da física que a asfixia com o seu poder e dinheiro. Duas semanas mais tarde, descobre que ele se suicidou, mas não acredita na notícia e “The Invisible Man” aproveita-se do trauma e obsessão de Cecilia para nos estrangular de igual forma, num duelo particular com o suspense que nos domina sem espinhas. O puzzle criativo entre som e imagem atinge várias vezes a perfeição, tecnicamente manipula de forma criteriosa e deixa-nos quase sempre pendurados a um cabo de alta tensão, mesmo que a narrativa não explique tudo nem o faça sempre de forma indiscutível. Sem esquecer o realismo científico da história, “The Invisible Man” – cujo trailer revela demasiado e não deve ser visto antes – devora-nos e mostra como se faz um convincente filme de terror e suspense.
A alma tem rosto
𝘗𝘰𝘳𝘵𝘳𝘢𝘪𝘵 𝘥𝘦 𝘭𝘢 𝘫𝘦𝘶𝘯𝘦 𝘧𝘪𝘭𝘭𝘦 𝘦𝘯 𝘧𝘦𝘶 junta duas ex-namoradas da vida real e foca-se em Marianne (Noémie Merlant), uma pintora que é contratada para retratar Héloise (Adèle Haenel), que contra a sua vontade se prepara para casar com um homem italiano que não conhece. Encapotar a raiva e tristeza de Helóise e destacar na tela a sua bondade e encanto é o desafio de Marianne, habituada a essa fusão artística entre a alma e o corpo. 𝘗𝘰𝘳𝘵𝘳𝘢𝘪𝘵 𝘥𝘦 𝘭𝘢 𝘫𝘦𝘶𝘯𝘦 𝘧𝘪𝘭𝘭𝘦 𝘦𝘯 𝘧𝘦𝘶, realizado e escrito por Céline Sciamma, é filmado na costa da Bretanha, no belo noroeste de França, de paisagens imponentes e onde os areais da praia são rosados. É nesse quadro que Marianne se impõe, sabendo que retratar alguém na tela passa por conhecer também os detalhes não físicos, escondidos no momento da pose. Estreado em Portugal no início de março de 2020, este retrato de uma mulher em chamas transporta-nos para a segunda metade do século 18, quando as musas francesas se inspiravam na mitologia grega (por exemplo, na ardente paixão vivida por Orfeu e Euridice) para poetizar a sua beleza. 𝘗𝘰𝘳𝘵𝘳𝘢𝘪𝘵 𝘥𝘦 𝘭𝘢 𝘫𝘦𝘶𝘯𝘦 𝘧𝘪𝘭𝘭𝘦 𝘦𝘯 𝘧𝘦𝘶 é belo e imprescindível; soma armadilhas visuais e opta por um ritmo propositadamente lento, baseado em alguns silêncios, à procura dos contrastes e da orquestra. Só depois liberta o espetador, sem pressa, rumo a um último plano, comovente e incendiado de sensibilidade narrativa e estética.
Antes a culpa que a crueldade
Uma família fica a saber que a sua matriarca, a quem chamam Nai Nai, tem uma doença terminal, mas com aval médico, aceite na China, decide omitir-lhe o diagnóstico. Irmãos e filhos acreditam que não são as doenças que matam, mas sim o medo de morrer, por isso planificam uma feliz despedida familiar e organizam um casamento falso de um dos netos com a sua recente namorada. Entre os familiares que se juntam, está a jovem Billi, num papel interpretado pela rapper Awkwafina, a primeira atriz de ascendência asiática a vencer um Globo de Ouro, tendo ganho a corrida em 2020 a nomes como Cate Blanchet e Emma Thompson. Depois de vários anos em New York, Billi e os seus pais estão de regresso à China, onde durante alguns dias representam o Ocidente e onde, ora de forma divertida e insólita, ora dramática e sensível, encaram o Oriente. Nem todos concordam com o segredo escondido a Nai Nai, mas poucas horas antes do casamento o tio de Billi lembra que ali “a vida de uma pessoa faz parte de um todo”. Sempre envolvido numa “farsa real” que funde paródia com genuína tradição chinesa, 𝘛𝘩𝘦 𝘍𝘢𝘳𝘦𝘸𝘦𝘭𝘭 incute o espectador a tornar-se parte de uma família que, mesmo quando sente culpa, prefere condensar a vida não por aquilo que se faz, mas pela forma como se faz. Também a realizadora chinesa Lulu Wang, antes de fazer carreira nos Estados Unidos, viveu um melodrama idêntico, num jogo de decisões que também aí foi conquistado pela sua família. Mesmo quando mente, 𝘛𝘩𝘦 𝘍𝘢𝘳𝘦𝘸𝘦𝘭𝘭 diz-nos sempre a verdade e nunca nos desampara, nem que para isso, na hora da despedida, chame o 𝘚𝘰𝘶𝘭 de Elayna Boynton, na sua afável versão do tema “Come Healing”, de Leonard Cohen. Felizmente, nunca haverá funerais para filmes assim.
Os soluços de Manhattan
Êxito imediato de vendas, “Apropos of Nothing” é a mais recente autobiografia de Woody Allen, aos 84 anos. Quase três décadas depois de acusado pela primeira vez de ter abusado sexualmente da filha adotiva, continuava a fugir do inferno como melhor sabe, através da arte, ao estrear, em 2019, “A Rainy Day in New York”, a chave de uma gaveta de sempre e em boa hora reaberta: Manhattan. Onde Selena Gomez, Jude Law, Liev Schreiber, entre outros, são peças de um cómico puzzle de coincidências, protagonizado por dois jovens que acabaram de entrar na casa dos 20, quando namorar não é bem amar e quando se diz ao mais velhos que queremos conquistar o mundo e eles não se riem de nós. Os jovens são Timothée Chalamet, também ele novaiorquino e que interpreta Gatsby, um jovem sensível e inteletual, mas amarrado pela família; e Elle Fanning, no papel da maravilhosa Ashleigh, doce, mas quase sempre ingénua e que soluça quando se sente embaraçada. “A Rainy Day in New York” despreocupa-se com o encaixe entre gerações e aproxima Woody Allen da sua juventude e dessa ansiedade de ser alguém. E mesmo quando dá ideia que tudo aquilo já foi dito e feito, uma narrativa refrescante é desatada e desarma quem procura uma história de amor, mas que vai ao engano, tropeça mil vezes e, a sorrir, se levanta outras tantas. De novo com o ID de Vittorio Storaro, até a chuva e o nevoeiro de Manhattan têm sempre intensidade e não fotografam felizmente o último filme de Allen (“Rifkin’s Festival” já está a caminho). “A Rainy Day in New York” é um ninho pessoal de vida e um ventilador absoluto de boa disposição.